segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Uma história contada em quadros.


Desde criança minha vida foi sempre contada em quadros.
Filha e neta de fotógrafos, em minha família, cada passo, cada conquista, cada novidade, muitos dos instantes mágicos que marcaram a misteriosa passagem do tempo foram apreendidos pelas tantas objetivas que passaram pelas mãos dos meus pais.
Nas prateleiras e armários da sala, guardados como relicários estavam nossos álbuns com uma breve cronologia em imagens de tudo o que quiseram preservar da nossa história. E foram vários álbuns!
Curiosamente, a “leitura” desses livros seguia um roteiro já bastante conhecido: cada imagem apresentada era seguida das narrativas que contavam sobre os personagens fotografados, o passado e o futuro dos instantes registrados. Histórias tantas vezes contadas que pareciam ter abandonado aquilo que chamamos de mundo real.
Nas paredes, outros momentos foram pendurados... Fragmentos de um tempo que queríamos elevar, suspender, eternizar, fazer memória: batizado, primeiro dia de aula, festas escolares, primeira comunhão, dentes caídos, dentes nascidos, os cortes de cabelo, a brincadeira com a roupa da mãe, crisma, 15 anos, viagens, cenas do cotidiano, os espetáculos encenados pouco antes do Jornal Nacional, nossos tantos aniversários, as corridas de bicicleta na rua, os joelhos machucados, os casamentos, os nascimentos...
Ao ver e contemplar todos os dias essas tantas fotografias, aos poucos fui sentindo que parte da minha vida já havia sido, irremediavelmente, evadida para o mundo da fantasia...
Talvez por isso o salto para os contos de outros universos tenha sido apenas conseqüência de uma certa curiosidade sobre o que se escondia além das minhas próprias aventuras.
Primeiro os contos de fadas e os textos bíblicos lidos por minha mãe ao pé de três camas e de um pequeno berço. Ambos seguidos por imagens coloridas preenchidas com tudo o que nossa imaginação tão rica em sonhos quisesse acrescentar.
Depois, a descoberta da semelhança entre as minhas aventuras e a de uma outra turminha do bairro do Limoeiro. Um “namoro” que durou longos anos, com pilhas e pilhas de gibis guardados dentro de um baú na cabeceira da cama. Mônica, Cebolinha, Cascão, Magali, Horácio, Tina, Chico Bento, Rolo, Piteco e o Astronauta foram responsáveis por me incutir o vício da leitura antes de dormir. Não havia possibilidade de sonho se não fosse precedido por alguma história, mesmo conhecida, já tantas vezes lida nas revistinhas da minha extensa coleção.
As brincadeiras com os clássicos da literatura universal, o resgate do folclore brasileiro, as metáforas, o uso contínuo da metalinguagem em alguns desses quadrinhos foram a porta de entrada para muitas outras leituras.
Então vieram as personagens da Disney: Pato Donald, Margarida, Mickey, Tio Patinhas, Pateta e tantos outros. Esses ficaram por pouco tempo. O colorido me parecia confuso e, para mim, faltava mais humor e coerência a algumas histórias.
O grande salto foi o encontro com o maravilhoso mundo dos super-heróis. Nas revistas cultuadas por meu irmão mais velho, a aventura da transgressão em invadir seu quarto e ler às escondidas suas histórias era apenas o prelúdio dos universos que se abririam para mim.
A sensualidade presente na representação da figura feminina, os arquétipos revividos nas entrelinhas das sagas de alguns heróis e a ansiedade pela espera da continuidade das narrativas foram o ingrediente que faltava para que minha paixão pelas imagens e suas histórias se consolidasse.
Primeiro “Super-Homem” e sua soberba diante da humanidade. Depois “Homem-aranha” e seus vilões cercados de temas científicos. A deliciosa escola do Professor Xavier e seus alunos repletos de poderes que sempre desejei possuir. A corajosa e, quase sempre, indestrutível “Liga da Justiça”.
Esses heróis me levaram a uma das mais deliciosas experiências literárias da minha juventude: a descoberta da mitologia grega. Foi por eles e com eles que li e reli toda a coleção das Aventuras Mitologógicas disponível na biblioteca da escola onde cursei o ensino médio.
Suas aventuras passaram a ser minhas. As experiências vividas pelas personagens dessas histórias fazia parte das conversas que tinha com meu irmão e, muitas vezes, os acontecimentos de cada revista eram relatados por nós como se tivessem ocupado a primeira página de algum grande jornal dominical, afinal, lá nos EUA tentaram matar o Super-Homem e parecia pouco provável que o Professor Xavier e seus alunos não conseguissem derrotar os próximos vilões!
De todos os heróis dessa fase, Batman foi o que mais impacto me causou. Talvez porque meu interesse por essa personagem tenha coincidido com a fase da vida em que muitos dos meus valores foram postos à prova. O momento em que dolorosamente comecei a perceber que os heróis de verdade não existiam e, que se existissem, teriam grandes conflitos como nós. Foi o fim da infância. Mas, não da fantasia.
Com os heróis vieram as tiras do cotidiano: Calvin e Haroldo, Garfiel, Niquel Náusea, Angeli, Snopy, Mafalda, A turma do Xaxado e tantos outros lidos diariamente no jornal após uma breve consulta aos astros nas previsões do horóscopo.
Por um bom tempo houve um hiato entre o meu mundo e o universo dos quadrinhos. Eles estavam lá, nas leituras das horas vagas, em algumas conversas com amigos, mas deixaram a cena principal e viraram meros coadjuvantes. Outras leituras ocuparam minha vida. Fui eu mesma em busca das minhas próprias imagens, resgatando o desejo de manter a tradição da fotografia na família.
Por ironia do destino, foram essas mesmas imagens que me aproximaram de um fotógrafo apaixonado por quadrinhos. Com ele fui apresentada a uma coleção repleta de grandes amostras da alta qualidade poética e gráfica desse gênero: da deliciosa biografia do Buda de Osamu Tesuka à violenta saga de “Preacher”, do sangrento “V” de vingança” ao sensual “Garotas perdidas”, do histórico “300 de Esparta” à onírica saga de “Sandman”...
Heróis outrora abandonados também voltaram com esse encontro: Batman, Superman, X-Men... e com eles, a construção de uma deliciosa relação sempre mediada pelo mundo da leitura.
Embora nossos caminhos tenham seguido rumos diferentes, nada seria igual depois desse resgate. Pessoas, assim como histórias, desenham marcas, levam e trazem coisas à nossa vida. Muitas vezes, como nesse caso, elas apenas retomam paixões que estavam esquecidas.
Em meio a tantas palavras e imagens que povoaram minha memória, minha história foi e continua sendo escrita quadro a quadro. Traço algumas linhas do roteiro e tenho, raramente, a sensação de que possuo algum controle sobre a obra. O resultado quase sempre causa surpresa, estranhamento, alegria, medo e muitas outras emoções que desconheço. Mas, isso nunca me impediu- e espero que nunca me impeça - de virar a página e experimentar intensamente o que virá.

Texto escrito para o curso "A póetica dos quadrinhos", ministrado por Reynaldo Damázio na Casa das Rosas

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Foi apenas um sonho

O que é um bom filme?
O que caracteriza uma boa história?
Não sei. Mas, para mim, as melhores narrativas são aquelas que nos fazem olhar a vida de uma nova forma. Que mexem com nossas certezas, trazendo-nos algum tipo de perturbação.
Se for assim, Revoltionary Road - que assisti ontem - é um ótimo exemplo de bom texto, aliado ao excelente trabalho de alguns atores e um diretor que sempre tem algo a nos dizer.
(Recuso-me a usar o título em português, repleto de interpretações e de respostas fáceis às perguntas dificílimas que o longa propõe.)
Confesso que durante a exibição senti no ar um certo incômodo entre os presentes. Estranhei os risos nervosos em resposta aos diálogos ácidos entre as personagens.
As pessoas mudavam de lugar, prendiam a respiração... Talvez com medo de aspirar a verdade gritada a plenos pulmões.
E como é difícil dar voz a lucidez da loucura!
Impossível assisti-lo sem sentir um "nó na garganta" frente aos dilemas do casal e às questões que o "american way of life" ainda tão presente em nossa cultura nos provocam.
Duas pessoas se encontram, cheias de sonhos. Casam, têm filhos, compram uma casa, obtém o seu sustento e ...
Quantos de nós já não nos perguntamos se as escolhas que fazemos são resultado de nossa vontade ou apenas uma resposta aos modelos que fomos levados a crer que deveríamos seguir?
Quantas vezes fomos capazes de olhar a nossa vida e tivemos coragem de procurar resquícios dos sonhos que tivemos anos atrás?
Quantos nos aventuramos a buscar as respostas possíveis às nossas verdadeiras inquietações?
Não sei.

Levarei um bom tempo para digerir esse filme.


Revolutionary Road, EUA, 2008. Dire: Sam Mendes. Com: Kate Winslet, Leonardo DiCaprio e Kathy Bathes. Estréia em 30 de janeiro.